No DF, 61% das pessoas não autorizaram doação de órgãos de parentes

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A decisão de doar órgãos no Brasil, ainda que seja manifestada em vida pelo paciente, depende de autorização da família. A morte de um ente querido é sempre uma situação difícil para os parentes, mas é justamente nesse momento de perda que o sofrimento pode ser transformado em um ato de esperança ao dar uma nova vida para pessoas que aguardam por um transplante.

No Distrito Federal, 955 pessoas esperam na fila por um transplante de órgão, uma demora que gera ainda mais ansiedade quando o paciente se depara com uma estatística difícil de combater.

De acordo com dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), no ano passado, 61% das famílias abordadas na capital do país se recusaram a autorizar a doação de órgãos do ente falecido. Ao todo, foram realizadas 168 entrevistas com parentes de possíveis doadores. O percentual é maior do que média nacional de recusas (46%) em 2024.

O levantamento também aponta que o índice é superior ao registrado em 2023, quando menos da metade dos familiares entrevistados no DF não concordaram que fossem retirados os órgãos e tecidos para doação (49%).

Veja as causas da não concretização da doação de órgãos no DF, em 2024: 

Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Arte produzida pelo Metrópoles

Depois da confirmação da morte encefálica do paciente, a família é entrevistada por uma equipe de profissionais de saúde, para informar sobre o processo de doação e transplantes e solicitar o consentimento para a doação.

Não é preciso registrar a intenção de ser doador em cartórios, nem informar em documentos o desejo de doar, mas a família precisa saber sobre a vontade do ente de se tornar um doador após a morte. Todavia, a negativa também ocorre mesmo a pessoa tendo declarado em vida o desejo de ser um doador.

Após a confirmação desejo da família em doar os órgãos do paciente falecido, a equipe de saúde realiza outra parte da entrevista, que contempla a investigação do histórico clínico do possível doador. A ideia é investigar se os hábitos do doador podem levar ao desenvolvimento de possíveis doenças ou infecções que têm chances de serem transmitidas ao receptor.

Efetivação de doadores

O cirurgião cardiovascular Fernando Atik aponta que a taxa de efetivação dos procedimentos no Distrito Federal está abaixo da média nacional. No ano passado, dos 163 doadores elegíveis, 41 tiveram os órgãos doados na capital — o número corresponde a uma taxa de 13,7% por milhão de população.

“Boa parte dos transplantes realizados no DF foram de doadores que residiam em outros estados e não de doadores locais. O aumento de doadores locais propiciaria melhores resultados, visto que o tempo de isquemia seria mais curto, reduziria a locação de recursos para a captação do órgão, porque você não precisa dispor de aeronaves e de uma logística extremamente cara”, argumenta o médico que também é membro da diretoria da ABTO.

Segundo o especialista em transplante de coração, a recusa dos familiares em autorizar a doação pode estar relacionada a desinformação, questões religiosas, ou mesmo por desconfiança no sistema de saúde. Segundo ele, a forma como a entrevista com a família é conduzida também pode influenciar na decisão.

Além do luto, há também um receio recorrente entre familiares: o medo de que o corpo do ente querido seja mutilado, atrasos na liberação para o velório e dúvidas sobre o respeito ao corpo após a doação. “Tudo isso pesa na decisão. Infelizmente, mesmo com a legislação prevendo a autorização familiar, muitas vezes o processo acaba interrompido por essas inseguranças”, comenta.

Quando comparado a estados como Santa Catarina, Paraná e Ceará — que historicamente apresentam os melhores índices de doação do país — o Distrito Federal fica atrás. “Esses números servem como um alerta. Precisamos fazer mais, porque do jeito que está, não está funcionando como deveria”, pondera o médico.

Entrevista humanizada

A coordenação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) é exercida pelo Ministério da Saúde. Em Brasília, esse trabalho é realizado pela Central Estadual de Transplantes do Distrito Federal (CET-DF).

A central é responsável pela coordenação das atividades de transplantes que abrangem a rede pública e particular de saúde. É de sua exclusiva competência as atividades relacionadas ao gerenciamento do cadastro de potenciais receptores, recebimento das notificações de morte encefálica, promoção da organização logística da doação e captação estadual e/ou interestadual, bem como a distribuição dos órgãos e/ou tecidos removidos no DF.

Os servidores do Núcleo de Organização de Procura de Órgãos, geralmente, são os responsáveis por conduzir as entrevistas com os familiares de possíveis doadores. Alguns hospitais contam com profissionais treinados nas Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante.

Uma entrevista humanizada e sensível com familiares de possíveis doadores de órgãos é fundamental porque, nesse momento de dor, o acolhimento pode influenciar na decisão da família. A abordagem empática, respeitosa e clara ajuda a construir confiança, reduz a resistência e permite que o parente compreenda melhor a importância do gesto de doar.

“É necessário que a equipe que assiste deixe sempre a família esclarecida sobre o processo da morte encefálica e sempre que possível e que eles queiram, possam acompanhar os exames. Assim, no momento da entrevista, eles já não tenham mais dúvida de como tudo ocorreu. Cada caso é um caso. Tem família que já consegue conversar em seguida e tem outros parentes que a gente opta por dar mais tempo. Vai depender do que o entrevistador sentir”, explica Gabriella Ribeiro Christmann, diretora da CET-DF.

Vida pós-transplante

Elvis Silva Magalhães, 58 anos, conviveu com a anemia falciforme — doença hereditária caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue —  por mais de 38 anos da sua vida. Por conta da doença, ele precisou passar por muitas transfusões de sangue e desenvolveu complicações hepáticas.

Em 2005, o escritor recebeu um transplante de medula óssea, único tratamento que cura a condição. O doador foi um dos irmãos dele. Apesar do procedimento ter sido um sucesso, Elvis continuou a conviver com as sequelas no fígado, por conta do acúmulo de ferro no órgão.

Até que, em 2018, o fígado de Elvis foi à falência e ele precisou entrar na fila de transplante. “Eu nem acreditei na hora, porque não passava pela minha cabeça a doação. Achava que a gente ia conseguir tratar com medicações. O meu quadro era tão grave que entrei como primeiro na fila. Foi um milagre eu ter conseguido um fígado novo em 10 dias”, relembra.

O órgão que o escritor recebeu veio de Roraima. A cirurgia de transplante aconteceu no Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal (ICTDF). “Meu medo era não sobreviver até aparecer um doador. O risco de ter algum dano cerebral era diário”, conta.

A doação deu expectativa de vida para Elvis que, até então, tinha risco de morte iminente. “A qualquer momento eu podia ir a óbito. E, dois anos depois desse processo, tive a satisfação de ver meu neto nascer e conviver com ele, que era algo que antes eu não imaginava conseguir. Tento fazer a vida valer a pena porque muitos paciente como eu não sobreviveram”, declara.

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O neto de Elvis nasceu dois anos após o transplante de fígado

Imagem cedida ao Metrópoles

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Ele passou pelo transplante de órgão em 2018

Imagem cedida ao Metrópoles

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O escritor teve falência do fígado em decorrência da anemia falciforme

Imagem cedida ao Metrópoles

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Atualmente, Elvis está com 58 anos

Imagem cedida ao Metrópoles

Lei de conscientização

A Lei nº 7.335, sancionada em 9 de novembro de 2023, instituiu a Política Distrital de Conscientização e Incentivo à Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos no Distrito Federal.

A legislação estabelece diretrizes para aumentar o número de doações e melhorar o atendimento aos pacientes transplantados, incluindo ações de acolhimento às famílias, capacitação de profissionais de saúde, campanhas de conscientização e ampliação do acesso a serviços especializados.

O decreto também prevê apoio psicológico aos transplantados e seus familiares, fornecimento contínuo de medicamentos e incentivo à reinserção socioeconômica de pessoas transplantadas no mercado de trabalho.

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