Recentemente, o Brasil tem assistido a uma notável expansão da legislação e dos atos administrativos voltados à proteção do patrimônio cultural. Um exemplo significativo é a Lei nº 14.835/2024, que instituiu o Sistema Nacional de Cultura (SNC), consolidando a cultura como um direito fundamental e estabelecendo diretrizes para a gestão conjunta de políticas públicas entre os entes federativos. Embora de escopo amplo, a nova lei reforça o dever estatal de proteção e salvaguarda do patrimônio cultural e incentiva a colaboração da mídia na sua difusão e conservação.
Paralelamente, observa-se um movimento positivo de reconhecimento de manifestações culturais historicamente marginalizadas, como as de matriz indígena e africana. O Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo, assegura a proteção de quilombos, do samba e da capoeira, determinando seu registro e amparo como elementos formadores da identidade nacional.
Contudo, essa proliferação normativa é acompanhada por uma preocupante banalização do instituto. Multiplicam-se os casos de bens e práticas declarados patrimônio cultural sem critérios técnicos, motivação idônea ou participação social. Veículos automotores, blocos de carnaval recentes e até mesmo um doce recém-inventado têm recebido chancela oficial, esvaziando o sentido da proteção. Um caso emblemático ocorreu no Rio de Janeiro, onde o serviço de táxi foi tombado como patrimônio imaterial por meio de lei, em um claro equívoco técnico e terminológico, cujo propósito real era criar uma reserva de mercado contra aplicativos de transporte.
Essa instrumentalização indevida da proteção cultural frequentemente mascara desvios de finalidade. Atos de tombamento e registro são utilizados para justificar a alocação de verbas públicas — por meio de patrocínios, isenções fiscais e emendas parlamentares — a projetos de interesse particular ou político, em detrimento de bens de valor cultural incontestável e que necessitam de conservação urgente.
Tais atos, maculados pelo vício de desvio de finalidade, são ilegais e passíveis de anulação. O ordenamento jurídico permite o controle judicial dessas decisões por meio de Ação Popular ou Ação Civil Pública. Para que um bem integre o patrimônio cultural brasileiro, a Constituição exige que ele seja portador de referência à identidade, à memória e à ação dos diferentes grupos formadores da sociedade. Ações que não cumprem esses requisitos podem ser invalidadas. É imperativo que a seleção de bens a serem protegidos seja criteriosa, baseada em estudos técnicos e diálogo com a comunidade, a fim de conter os excessos e abusos que descaracterizam as políticas de preservação.
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