Reunir todos os povos originários brasileiros sob a expressão simplista “índio” seria o equivalente a negar as inúmeras peculiaridades de cada grupo, construídas ao longo de séculos e gerações. Seria como ignorar a evocação de espíritos ancestrais no ritual xamânico dos Yanomami, ou a habilidade agrícola dos Tupi-Guarani; seria como retirar do corpo dos Kayapó as suas pinturas geométricas, e do rosto dos Tikuna suas máscaras ritualísticas. Fundidos em um todo indistinto, os Xavante não iniciariam a vida adulta em um ritual de força e resiliência, os Karajá não se representariam em bonecas de cerâmica e os Huni Kuin não cantariam para transmitir seus conhecimentos aos mais jovens.
Para que existam plenamente, os povos indígenas – cujo dia será comemorado no próximo sábado (19) – precisam de identidade, mas também necessitam de proteção efetiva a seus direitos. Essas garantias estão asseguradas pela Constituição de 1988 e por vários tratados internacionais. No campo da saúde e do bem-estar, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2008), por exemplo, estabelece que esses grupos devem ter acesso igualitário e sem discriminação a todos os serviços sociais e de saúde.
No Brasil, a garantia à saúde dos povos ancestrais se reflete em normas internas, como a Lei 9.836/1999, que criou o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), reforçando a proteção e a promoção da saúde dessas comunidades.
Em sua tarefa diária de interpretar o direito federal infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) formou uma jurisprudência que dá efetividade aos direitos dos povos indígenas e consolida melhorias em suas condições de vida.
Um exemplo da atuação da corte foi a edição da Súmula 657, em 2023, para reconhecer o direito de indígenas menores de 16 anos ao salário-maternidade, desde que preenchidos os requisitos de segurada especial no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e respeitado o período de carência.
Um dos precedentes que fundamentaram a súmula foi o REsp 1.650.697. Nesse caso, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para assegurar o direito ao salário-maternidade às indígenas gestantes, mesmo que com menos de 16 anos de idade.
O ministro Mauro Campbell Marques, relator do recurso especial, destacou que a Constituição Federal de 1988, a Convenção sobre os Povos Indígenas e Tribais de 1989 – ratificada pelo Brasil, por meio do Decreto Legislativo 143/2002 – e o Estatuto do Índio garantem aos povos indígenas os mesmos direitos previdenciários conferidos aos demais trabalhadores.
Mauro Campbell Marques ressaltou que o ordenamento jurídico nacional e internacional tem uma preocupação expressa em proteger as populações indígenas e tribais, historicamente afetadas por processos de extermínio e aculturamento. Segundo ele, a interpretação das normas previdenciárias deve garantir a essas populações o mesmo nível de proteção assegurado à sociedade em geral.
O ministro ainda apontou que, embora a Constituição vede o trabalho para menores de 16 anos, essa restrição não pode ser usada para impedir o acesso a direitos fundamentais, sob pena de agravar a vulnerabilidade social dos jovens indígenas. Campbell reconheceu que, apesar de ser prioridade estatal a educação de crianças e adolescentes, a realidade socioeconômica de muitas famílias faz com que muitos menores atuem no mercado de trabalho.
Em 2024, ao julgar o AREsp 2.383.605, a Primeira Turma decidiu que os estados são parte legítima para figurar no polo passivo de ações que buscam garantir o fornecimento regular de água potável e saneamento básico às terras indígenas.
O MPF ajuizou ação civil pública contra a União, o estado do Paraná, o município de Terra Roxa e a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) para garantir o acesso adequado da comunidade indígena Tekohá Yvyraty Porã, em Guaíra (PR), aos serviços essenciais de saneamento básico. A investigação constatou que a aldeia não dispunha de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário e coleta regular de lixo.
O juízo de primeira instância condenou os réus a fornecer água e coletar o lixo, e determinou que a União disponibilizasse um agente indígena de saneamento (Aisan). O Paraná recorreu, alegando que a responsabilidade pelos serviços de saneamento básico e atenção à saúde em comunidades indígenas seria exclusiva da União, mas o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) manteve a sentença.
No STJ, o ministro Gurgel de Faria, relator do recurso do estado, afirmou que a Lei 8.080/1990, ao tratar da atenção à saúde indígena, prevê em seu artigo 19-E que os estados, municípios e outras entidades podem atuar de forma complementar no custeio e na execução dos serviços de saneamento básico.
Ministro Gurgel de Faria
STJ
O relator também afastou o argumento de exclusão da responsabilidade do estado do Paraná, ressaltando que a Lei 11.445/2007 não limita a atuação estadual em matéria de saneamento. Ele esclareceu que a questão em debate não envolve a competência para a formulação do Plano Nacional de Saneamento Básico – essa, sim, de atribuição exclusiva da União –, mas a necessidade de garantir a efetiva prestação do serviço à comunidade indígena, dentro de um esforço conjunto entre os entes federativos.
“Discute-se, na realidade, a obrigação de atendimento local/regional de saneamento, cuja execução é operada em articulação com os estados (artigo 52, inciso II, da lei), a justificar a pertinência subjetiva passiva”, disse.
Em 2009, ao julgar o REsp 1.064.009, a Segunda Turma considerou ilegal e ilegítimo discriminar, na prestação de serviços de saúde pelos entes públicos, os povos indígenas aldeados e os grupos que residem fora das reservas. Na ocasião, o colegiado estabeleceu que a legitimidade do MPF para propor ação civil pública em defesa da saúde indígena, com base no artigo 129, inciso V, da Constituição Federal e no artigo 6º da Lei Complementar 75/1993, é a mais ampla possível.
O recurso teve origem em uma ação proposta pelo MPF após a negativa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) em fornecer atendimento odontológico a uma indígena, sob a justificativa de que ela não residia mais na aldeia Xapecó, em Santa Catarina. O MPF solicitou o atendimento não apenas à mulher, mas também aos indígenas fora da reserva, requerendo acesso às ações de saúde da Funasa destinadas aos moradores da aldeia.
Em resposta, a União e a Funasa recorreram ao STJ, argumentando que o MPF não teria legitimidade para propor a ação e que não haveria previsão legal obrigando a prestação de assistência à saúde a indígenas não aldeados – os quais, segundo os recorrentes, deveriam buscar atendimento no SUS.
Em seu voto, o relator, ministro Herman Benjamin, confirmou a legitimidade do MPF e manteve a decisão que assegurou a todos os indígenas – independentemente de sua localização – o direito à assistência médico-odontológica prestada pela Funasa. Para o ministro, o status de indígena não está condicionado ao local onde a pessoa reside, pois, se fosse esse o critério, os povos originários ficariam desamparados assim que saíssem de suas aldeias ou reservas.
Ministro Herman Benjamin
STJ
Sob a relatoria da ministra Assusete Magalhães (aposentada), a Segunda Turma confirmou, em 2021, a legitimidade do MPF para atuar em ação de indenização pela morte de uma criança indígena, atribuída a falha na prestação de serviços de saúde.
A decisão foi proferida no julgamento do AREsp 1.688.809, decorrente de uma ação civil pública ajuizada contra a Fundação Serviços de Saúde de Mato Grosso do Sul (Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, vinculado ao SUS) e a União, visando a indenização em razão do falecimento de um bebê da tribo Ofayé-Xavante. Nas instâncias ordinárias, o pedido foi negado, ao fundamento de que se tratava de um direito disponível e divisível, o que implicaria a ilegitimidade do MPF para pleitear a reparação.
No STJ, a relatora salientou que a CF/1988 reconhece a vulnerabilidade peculiar dos povos indígenas, motivo pelo qual o artigo 129, V e IX – assim como o artigo 37, II, da Lei Complementar 75/1993 –, confere ao MPF legitimidade para defender judicialmente seus direitos e interesses.
A ministra observou que o próprio acórdão recorrido reconheceu a precariedade do acesso à Justiça na região em que vivia a tribo Ofayé-Xavante, onde não havia Defensoria Pública da União, mas apenas a Defensoria Pública estadual. Nesse contexto, ela destacou que a atuação do MPF buscava assegurar tanto o direito dos indígenas a serviços de saúde adequados – cuja deficiência teria resultado na morte da criança – quanto seu acesso efetivo à Justiça.
Assusete Magalhães lembrou que a jurisprudência do STJ vem reafirmando a legitimidade do MP para ajuizar ações civis públicas na defesa de direitos individuais homogêneos, mesmo que disponíveis e divisíveis, desde que haja relevante interesse social, especialmente em temas como dignidade humana, saúde e educação.
Ministra Assusete Magalhães
STJ
Ao julgar o REsp 1.672.855, a Segunda Turma do STJ afastou a responsabilidade exclusiva da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) pelo fornecimento de energia elétrica a escolas e postos de saúde em comunidades indígenas. O colegiado salientou que a lei não restringe à autarquia a execução de projetos de apoio aos indígenas, distribuindo essa responsabilidade entre União, estados e municípios, conforme as competências de seus órgãos e autarquias.
No caso, uma distribuidora de energia recorreu da decisão que afastou a obrigação da Funai de arcar com as contas de energia de unidades escolares e de saúde em comunidades indígenas. A concessionária alegou que, conforme norma da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), apenas a Funai poderia ter solicitado as ligações elétricas e que, portanto, caberia à autarquia a responsabilidade pela prestação desses serviços.
O relator, ministro Afrânio Vilela, destacou que os serviços de educação e saúde aos indígenas são prestados, respectivamente, pela Secretaria Estadual de Educação e pela Funasa. Para o magistrado, a suposição de que a Funai solicitou as ligações de energia era insustentável, pois não havia prova direta que vinculasse a autarquia aos pedidos. Para Afrânio Vilela, era responsabilidade da concessionária registrar adequadamente as solicitações para comprovar sua origem.
“Caberia à concessionária diligenciar ou para não efetivar ligações solicitadas por quem não poderia pedi-las ou, no mínimo, manter registro adequado desses pedidos, de modo a comprovar concretamente sua origem, e não fazê-lo presumir por uma tênue previsão normativa não sustentada pelos fatos”, declarou.
Vilela também rejeitou o argumento de que, por não possuírem personalidade jurídica, as comunidades indígenas dependeriam da Funai para solicitar o serviço. O ministro informou que a legislação prevê a atuação conjunta dos entes públicos na execução de políticas voltadas às comunidades indígenas.
“Nada obsta que a secretaria estadual ou a Funasa o tenham feito diretamente à concessionária, a quem caberia, como dito, manter o devido registro documental. São esses órgãos que, conforme consta na sentença e não é contrariado pelo acórdão, prestam os serviços específicos de educação e saúde aos indígenas”, concluiu.